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10 abril 2013

[crônica] A saga do pombo rude

Era alto o Sol do meio dia, areia fervilhando de emoções perdidas, um parquinho infantil jogado aos detritos, poucos vultos se atrevem a passar pelo portal enferrujado, nenhuma criança visita o local de mau agouro e nenhum mendigo reivindica o espaço coberto do poleiro com o escorregador.

Ali reside o mais vil e perigoso animal de toda a fauna da Praça de nome de algum presidente perdido. O pombo rude reina sobre todos os outros Colombos, sem medo de ser destronado ou oportunado, afinal de contas, ele é um pombo e é rude.

A saga começa com um simples almoço bem feito, barriga cheia, consciência esvaziada, coração nulo e o calor bendito de um dia de outono na capital catarinense. Sento-me ao banquinho encardido sem me importar se está úmido ou não, creio que devo me contentar com o Sol a pino, já que o assento que recebe meu traseirinho está seco e conservado. Apesar do calor, há o que admirar na Praça velha e largada, toda a decadência de um parquinho infantil, com seus brinquedos descascados, mecanismos falhos, e cordas bambas me remetem a uma lembrança bem doentia de minha infância em algum bairro do continente: pombos.



Eles estão por toda parte, rolando ao chão em banhos de areia improvisados, bebericando poças de água turva da chuva anterior, bicando insetos ou coisas jogadas pelos mais simpatizantes, tudo num espetáculo lento e corriqueiro da imundície que uma ave pode trazer. Entre ratos e pombos, fico com os amiguinhos da Peste Bubônica, são mais amistosos e com certeza devem conter mais proteínas. Pombos são pragas, isso é do senso comum, mas um pombo rude de olhar letal pode ser mais.

Sentada no banquinho, esperando o tempo do almoço acabar, vigiando atualizações no celular, uma garrafinha de suco ao meu lado e uma embalagem de isopor velha, cheia de água da chuva com muita terra no fundo ao meu lado. Investigo o recipiente e vejo que pode ter sido deixado ali a esmo, ou alguém se sentia responsável em deixar água para os pombos. O que seja que essa fonte de bebericagem, o pombo rude aparece. Empoleirado nas grades que separam o parquinho infantil do restante da Praça, olhar fixo no mesmo ponto em que eu olhava - o isopor com água - e o focinho mais rude que já tive o desprazer de conhecer.

A penugem branca lhe é falha na altura do pescoço e dá lugar para um escuro feito de pura sujeira. O bico torto e pendendo para fora da cabeça minúscula, mostra o quão mortífero ele pode ser. As asas em meio caminho para um voo ameaçador completa o pacote do terrorismo aviário deflagrado por uma espécie mínima de importância na cadeia alimentar, mas que pode ser a nossa ruína.

Ele fixa o olhar no recipiente, e quando tento entender o que ocorre com tamanha intimidade entre pombo e pote de isopor, percebo que o olhar é inteiramente para mim. Um olhar vil e profundo, que rasga barreiras psíquicas, carne, osso e alma, quase um tiro invisível de um fuzil colombino. Quantos mortais sobreviveram a esse tipo de julgamento? Um pombo rude que te encara durante minutos sem demonstrar nada além do ódio imenso pela minha espécie. O bípede, o sem asas, o sem penas, aqueles que poluem mais que qualquer outro mamífero. Mas era um pombo rude! É claro que suas idéias tradicionalistas serão mais altas que as minhas, que apenas o imagina como um efeito colateral nocivo entre as galinhas.

O minuto perdura, o olhar se torna obsessivo, quase um mantra de ódio silencioso. REDRUM - REDRUM - REDRUM, consigo ouvir os versos do tão famoso "O Iluminado" ao encarar de volta o animal de alta periculosidade. E ele está ali, a me olhar fixamente porque estou perto de seu (possível) isopor de água. O nervosismo me abala, e me distrai dos arredores da Praça de nome de presidente falido. Um ressoar de um trompete é ouvido ali perto - o Batalhão de Bombeiros está de almoço pronto, pessoal! - e isso desvia a minha atenção, mas não meus medos. O pombo não parece se abalar, já os outros saem, em uma revoada incerta, entre o bater de asas alucinado atrás de mais migalhas de comida fácil. Ele impassível, continua ali, a me olhar, mesmo com o som da marchinha em trompete, dos carros barulhentos na rua, de algumas crianças corajosas o suficiente para adentrarem o parquinho e brincarem no balanço.

Surpreendente.

Meu tempo vai acabando, necessito levantar e voltar a Vida Real, mas o pombo continua ali, olhos vidrados em minha pessoa, inquisidoramente me testando a cada movimento que faço ao sair do banquinho. Alguém passa entre minha pessoa e ele, nem a proximidade o faz se afastar das grades em que estava pendurado, recolho minha garrafinha de suco e toco meu destino. O desprezo que recebo da ave é inigualável, mas percebo que também é para qualquer um que tenha duas pernas e um cérebro maior. Ele é um pombo reacionáio, não quer perder seu posto entre os demais.

Afinal de contas é um pombo.
E rude.
E pronto para te matar, caso você faça algo errado.


Ps: Alguém se lembra da tia dos pombos em Esqueceram de Mim 2?

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