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02 outubro 2017

onde foi que o erro começou?


Era uma bela manhã de começo de semana. Tudo estava certo e sob controle. Os passarinhos cantavam, o sol brilhava pálido em um céu coberto por grossas nuvens de uma possível chuva para a tarde. Dava pra ouvir o ruído incessante do mundo revolver a terra, o ar. Com uma banana já machucada do tempo guardada e deixada em cima do tampo da bancada, não percebeu que o dia começaria com vida. Seis na verdade. Pequeninas vidas cobertas de pelos, da mesma classe mamallia, ordem primates, pequeninos em suas constituições, vorazes no devorar a pequena banana meio amarela, meio preta. Comida afinal.

O menorzinho era o que arrancava mais pedaços, ávido pelo alimento, por não querer passar mais fome, não se sabe o que se passa na cabeça de primatas irracionais com um nome científico tão diferente. Era manhã ainda, as cascas detonadas retiradas, despojos do banquete dos seis atentos a qualquer outra oferta de alimento. Melhor fechar a janela para não entrarem em lugar que não pertence a eles.

A cada janela fechada, um olhar curioso. Os cinco maiores em volta do pequeno, como uma proteção na couraça daquele que deveria receber mais atenção para seu crescimento.

Todos nós crescemos algum dia.
Uns com proteção de cinco poderes.
Outros com a repreensão de cinco carrascos.

Era para ser uma manhã normal, café passado, mágoas internas a remoer, aquela frase mal escrita que ruminada várias vezes causa indigestão em sua entoação. Tudo funciona maravilhosamente do lado de fora, esse sistema de fingimentos tão elaborado.

Um belo teatro de tragicomédia que ninguém quer admitir que também já foi ator.

A primeira pedra no teto de vidro é jogada por seres racionais, nada de micos em busca de bananas meio apodrecidas. O que chamam de gatilho entre os meios de proteção, se torna vergonha, humilhação, doença. Onde foi que o erro começou?

É assim que nos observam na maior parte do tempo.
Ao fazer o movimento de se mover da apatia que se instala quase instantaneamente, os pequenos primatas estão lá a observar pela janela, empoleirados como espectadores do espetáculo vazio dos humanos.

A Morte é algo tão natural na vida dessas pequenos seres que não parecem ser afetados mesmo se a digníssima senhora pousa a mão descarnada em seus olhos. Sortudos são por não a temerem, já nós, bípedes, com um crânio maior que os do resto da família, morremos de medo de mencioná-la como parte da nossa vida. Entre bênçãos, sinais de cruz, orações, constatações e teorias de conspiração, a manhã segue. Sem menos uma pessoa na Terra. Sem mais tantas todos os dias. A taxa de mortalidade só é suficiente se o de natalidade está acima da média.

O baque da primeira pedra foi como se jogar a mesma em um lago sombrio e turvo. As ondas que ali propagam são muitas, cada uma quebrando um silêncio e harmonia de inércia que vale a pena ver esse espetáculo também, de ser protagonista, de ter a realização que no final todos nós iremos.

Para onde não sabemos, mas iremos.
Somos arranjos temporários em um mundo em eterna cons/destruição.

Passamos tanto tempo contemplando do quê vamos viver, até quando iremos viver. Será que a vida começa agora ou é apenas uma questão de impressão dos outros? Será que aquele momento em que saímos de seja lá onde estávamos para virmos para cá foi quando começou o erro?

Esse erro de viver ao contrário e morrer um pouco cada dia? Inovar, renovar, renascer, reviver, desmorrer. Todo santo dia. Mais um dia, menos um dia. Não muda muito a ordem dos fatores. A dona que tanto tememos, de unhas roídas, dedos descarnados, face coberta pelos nossos medos, capuz, foice, em silêncio, sorrateira e harmoniosa. 

Será que o erro foi aquele dia na semana passada? Será que o cálculo não deu certo naquele dia perto do mar? Quando aquele cantor bacana da nossa adolescência se foi? Ou o comediante que fazia tantas pessoas felizes e assim, inesperado ir? Ou colega de sala de aula? Ou alguém querido que você gostaria muito de conservar numa redoma protegida pra ninguém machucar? Será que o erro foi o som do caixão baixado em terra fina e o som de crianças brincando de fundo? Aquele parente distante que nem conheceu direito, mas amava mesmo assim? A pessoa que víamos nos corredores, mas não sabíamos o nome direito? Talvez naquele dia que parou de se importar se tinha algo bombeando seu sangue? Que talvez aquele maldito músculo cardíaco nem deveria funcionar em primeiro lugar? Ou naquele dia solitário, na mesa do café, com um pedaço de papel azul na mão, lápis e um rabisco e um plano e passos e treinos mentais e a decepção ao perceber que não havia prédios com mais de quatro andares na comunidade? Ou nas vezes em que uma garrafa vazia, estômago embrulhado, álcool nas veias, mente em um buraco tão profundo que nenhuma luz poderia chegar? Ou talvez naquela noite que ouviu de alguém que uma pessoa desconhecida chorou tanto que não aguentou mais sair da cama? Será que o erro não foi aquele dia em que te conheci? Ou te vi não conseguir sair da cama? Ou quando eu não pude sair da cama? Quando o erro do motociclista/motorista foi o cálculo desprezado? Ou prometer coisa que não devia? Será que o erro não foi entregar os pontos e me deixar viver pela vida de outrem? Será que não foi naquele dia em que soubemos que o viaduto era alto o suficiente? Que o cálculo dos sete metros pra cima estava certo? Será que foi quando vimos o primeiro funeral às antigas com corpo estendido na mesa da sala de jantar, família reunida, nem sabia nome, apenas que tinha me chutado um dia antes no recreio por falar diferente? Será que foi o perceber que a criança tinha a minha idade? Será que foi a hora errada de acordar e ir para a cozinha e não entender o que tava acontecendo, que não era um pedaço de bolo que queria cortar? Será que o erro de cálculo não foi o de lembrar que viver parecia peso demais pra quem cresceu rápido demais?

Talvez o erro tenha começado há anos atrás, o de achar que sorrir e fingir feliz é mais fácil que tratar o que mais machuca. Talvez seja a cada ameaça, difamação, humilhação, investigação, prisão, surto psicótico, quebra de móveis, de ossos, punhos cerrados, sangue escorrendo, dentes cerrados, olhos fechados, cada medicamento tomado, cada atrevimento anotado, cada movimento travado, cada ferimento não curado. Talvez o erro tenha começado ali, ter consciência de que está errando, a cada dia, bendito, santo, maldito, profano.

Erro medido. 
Erro calculado. 
Erro irremediável. 

Vergonha. 
Honra. 
Doença. 

Talvez o erro tenha sido termos consciência disso, de nossos erros aos ver os erros dos outros. Os micos da janela não se abalaram pelo erro de racionalidade de um de seus primos e muitos primos primatas bípedes por aí afora. Os micos não cometem erros, ainda bem. Protegidos por couraças e instintos e sem medos de vossa excelência que tarda, mas não falha.
(E não é a Lady Justiça que estamos falando)

Talvez o erro tenha acontecido no mesmo momento que colocamos muita fé em algo que não alcançamos e pouca compreensão no que realmente está ali, em nossas fuças, bem no meio dos olhos, só esperando o que consideram um erro nosso para ser um acerto dela. Porque no final todos sabemos o que vai ser. Quem estará ao nosso lado. Dedos descarnados, unhas roídas, capuz e foice, a Primeira e a Última. Nos acenando devagar desde o começo até o fim. 

Resquiescant in pace aos que ficam. 
Aos que vão, o alívio. 
Para os micos, esse nosso mundo humano deve ser uma selva bem confusa. 

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