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14 maio 2017

[conto com angie] como os pesadelos são construídos

Título: como os pesadelos são construídos (por BRMorgan)
Cenário: Projeto Feéricos.
Classificação: PG-13.
Tamanho: 2.126 palavras.
Status: Completa.
Disclaimer: Esse conto faz parte de algum rascunho perdido meu do Projeto Feéricos que vocês podem ver os pedaços sendo costurados aqui nesse post [x]
Personagens: Angie, personagem sem nome
Resumo: Filha dos Ventos tem uma história para contar aqueles que querem ouvir - como os pesadelos são construídos. E como eles tomam forma quando um feérico se aproxima demais deles.


'Dolina Śmierci do artista polonês Zdzisław Beksiński -  (Fonte: Carajaggio)
Tá preparado meeeeeeesmo pra ouvir essa? 

Já avisando que não pego leve quando é pra falar do meu assunto favorito N, ão tá 
Vai nessa mesma? 
Então senta esse traseirinho lindo aí no chão e me ouve. 

Essa foi de verdade mesmo, quando era um toco de gente, sem muita coisa aqui na cuca, cuca fresca, novilha, infante, bem assim mesmo, alcançando metade do joelho. 

Você perguntou se nós temos pesadelos, pois te digo. 
O tempo todo. 

E como são feitos esses pesadelos? Como pode a gente tão perfeito assim (foi você que falou, não tenho nada a ver com isso aí e a tua opinião) ter pesadelo? Ter medo? Nos sonhos a gente não se dá sempre bem? Não é isso que os poetas escrevem quando inspirados? Sócios de uma vida que não vai existir aqui? Pois te digo, papudo, a gente tem pesadelos sim e faz uns bem horríveis, viu? 

Quando eu era um tiquim de gente e não sabia quem era, os meus pesadelos eram como pequenos duendes chatonildos me cercando a cada passo que eu dava, me acompanhando em toda esquina que parava pra pedir esmola, entre cada dia escaldante debaixo do viaduto, entre os sacos plásticos do Posto 2, cada dentada em comida do lixo, cada engolir de água de chuva. Aí que eu fazia uns pesadelos bem fofuxos. 

É nesses momentos em que a gente perde a inocência pro mundo louco aqui fora, tem como não. 


Os chatonildos me perseguiam demais, até darem um susto na dona Alcidez e ela ir embora de vez. Aquilo me assustou sabe? Como pode uma coisa assim vinha pra te perturbar fazer isso com gente que nem pode ver essas bobageiras? 

Fui perguntar pro Zé Ferreira o que tinha acontecido, ele era sabido no aterro, sabia das coisas mais que a gente, ele disse que dona Alcidez era velhinha já, tomava remédio pra pressão, não podia ter muita emoção, aí meus pesadelos pularam nela num dia aí e deixaram biruta a velhinha que me acolheu por anos naquele lugar. 

Zé Ferreira disse também que gente com a idade dela tem muito disso, de perder o controle dos canos, dos miolos, das canetas, de saber quando é dia ou não, quando é 2015 ou 1990, perde a noção mesmo. Mas eu sei o que foi mesmo, foram meus pesadelos, aqueles que alimentei com a minha raiva do mundo dos filhos mais novos.

 E raiva não leva ninguém pra frente, sabe? Nada a ver com nada. Meu velho lá no hospital disse uma vez isso, que quando a a gente guarda muita coisa ruim aqui dentro, algum dia a sujeira sai alagando tudo que você construiu. 

Como se faz um pesadelo? Te digo como, papudo. Cê vai precisar de muito rancor, muita raiva e muita dor. E medo. Muito medo. É disso que eles são fominhas, sacas? 

Quanto mais medo, mais eles ficam grandão e vai ocupando mais espaço que devia. Ocupar mesmo, porque querendo ou não, pesadelos fazem parte da gente. Não de vocês, tá? Mas dos meus chegado? A gente precisa de um pouco da sujeirinha pra ser mais limpinho. 

O medo de chuva ferrada em noite de Natal me fez criar um pesadelo bem ruim. Mó ruim mesmo. Eu costumava dormir num bairro chique ali pro sul, num terreno abandonado com umas construção meio capenga, sacas? Tipo abandonada? Como é que aqueles caras da Civil chamam? Construção em risco de desabamento.

Besteira, né. 

É trela pra fazer a gente que não tem onde morar ficar longe porque as grã-finada não é chegada em trombar com a gente. Pois então, era eu lá, dormia bem lá, sem duendes pra incomodar, tinha umas árvores já invadindo concreto, derrubando tijolo com visco e trepadeira, uma maravilha da Grande Mãe, te falando... 

Quando dormia lá era fresquinho, essas bobageiras de poeta, sacas? Orvalho, cheiro de terra molhada, vendo as raízes crescendo, dando flor, uma rocha enorme e inteira me protegia da visão ruim do trânsito lá fora e também me mantinha de boas com o calor ferrado do verão, tudo assim no meio daqueles escombros. 

Aí a grã-finada descobriu que eu tava ali, no meu canto, sem incomodar ninguém, não pedia dinheiro ou comida ali não, os milico ficam direto nessa vizinhança puxando saco de riquinho e comendo de graça nos boteco e padaria, sacas? Nem eu posso chegar lá e pedir coisa, milico percebe, enquadra a gente, bota no cambura e leva pra ser petisco da Banalidade. Quero isso não, sô! Eu só queria dormir em um lugar onde me sentisse bem com o solo que eu deitava. Deitar no asfalto faz mal, não te traz nada, só poeira pestilenta e aquele grude de piche. 

Aí os riquinho vieram, aí danou-se. 

O medo de chuva no Natal trouxe muita coisa, sabe? Pra vocês até que parece uma cosquinha esquisita atrás da nuca, às vezes uma virada de estômago, um ventinho gelado que não sabe de onde veio. Pra mim era já sacar que as memórias daquele lugar ali iam pular que nem pipoca da superfície, caso alguém começasse a lembrar. Mó ruim. 

Fui saber de um camarada bêbado trocando as pernas no largo, os escombros era de um prédio enorme que tinha ali no terreno abandonado, prédio chique assim dos riquinho mais nariz em pé. Advogado, desembargador, militar, aposentado, e numa chuva ferrada no Natal, assim de horas de não parar de jeito nenhum, a montanha lá atrás decidiu espirrar, sacas? Espirrar assim, tipo, uma pedra enorme lá de cima. Bem foda. 

Opa, desculpa véi, cê é criança ainda né? 
Foi mal, foi bem ruim. Mó ruim mesmo. 

A pedra escarrada desceu, veio com tudo pros prédios dos grão-fino e PAFT!! Atingiu os prédio em cheio. Disseram que nem deu tempo do povo correr, não deu tempo nem de gritar socorro, não deu tempo de morrer, sacas? Quase 200 cabeça nisso, teve gente que nem foi encontrada, tá lá ainda, corpo escondido no chão, mó ruinzão... 

Oh, vai embora não!! Cê perguntou como se faziam pesadelos? Tou te explicando uai! Não é história de terror não, poxa! Entende uma coisa, seu coisinha: quando a gente deixa essa pele aqui, quando vai pro outro lado, fica lá, tá? Não tem essa de voltar pra puxar pé de vivo não. Pra que raios você desperdiçaria a tua morte incomodando os vivos? 

Parece que não sei, eu digo ei, digo ei... 

É essa história aí foi o de lembrar da chuva no Natal e o que eram os escombros. E véi, sério, eu dormindo ali. Onde um prédio todo caiu em questão de segundos. Culpa daquela pedra linda ali na frente, quase chegando no muro pra rua barulhenta. E a maldita era bonita viu? Lisa do lado todo de cima, com uma cor marrom tão lustrosa que parecia que alguma quimera gigantesca dava uns trato fino com graxa e flanela, sacas? Assim perto do chão era musgo e verdinho cheiroso, não tinha nada podre ali não, os passarinho fazia festa com as minhoca que brotava na primavera. E eu lá dormindo perto da maldita que foi escarrada pela montanha, véi... 

Aquilo me assustou, pacas. 

Decidi pegar minhas coisas, sair dali, ir de volta pro largo e me ajeitar com as marquises das casas históricas de lá, tudo cagada de pombo e rato, mas porra, o lugar era bonito sabe? Se você passar lá hoje, a maldita tá lá zombando dos motoristas e incrustada no chão de não poder tirar a força ou explodir. E lá vai ficar, porque ninguém tem coragem de chegar perto. 

Aí que começa um pesadelo. 

Quando tem sonhos e desejos e medos e emoções muito pesadas em um determinado lugar. Se quimera nasce pela vontade de algo ou alguém muito poderoso, saporra de pesadelo?! É o conjunto disso com mais coisa que nenhum sábio ancião conseguiu entender. 

Antes de sair, a última noite foi fo... Ahn ruim, mó ruim. A história que o pinguço falou no botequim ali perto perturbou umas energia, sabe? Quando tu respeita o lugar como tá, beleza. Ele te devolve a mesma energia que tu tá botando fé ali, sacas? Mas quando alguém levanta o tapete das más lembranças e das tragédias, aí véi. Ferrou véi. E pra gente aqui quando ferra é pior que prodígio filho mais novo levando chicotada da realidade por mexer com magia. E porrada, tiro e bomba nas fuça. Nesse caso foi um pesadelo. Um bem grandão. 

Era pra chegar Natal, chovendo pra cara... ahn pra caçamba, urrum, e aí aquele trem né? Chovendo pra caramba, muita água, morro de medo disso, dessa de deslizamento, os homi tão sempre falando disso, pra ter cuidado com encosta de morro, mó tensão, aí tava lá eu, encharcada até a alma debaixo daquele prédio fantasma, tudo silencioso, só essa chuva maldita batendo na pedra lisa e me lembrando do que não se deve, a gente fica com muita raiva quando tá sozinha na chuva, sabe? Vende a alma pro diabo se for o caso, pragueja, contra a mãe, pai, filho, o espírito santo e o que for. E a chuva caindo, te lembrando o quanto os outros não dão a mínima pra o que tá acontecendo, muito louco isso e aí a pedra fazendo aquele barulho, mó nada a ver, as parede do prédio detonado lá e do nada, do nada, as viga começa a tomar vida. 

Tá achando que tou de sacanagem? 
Pois vou te falar, não é zoera não! 

As viga tomando forma, contorcendo, era bloco de escombros com ferro torcido e iiiiiixi, ferro é letal pra gente né? Um toque naquilo e meu corpo pinica de tanto comichão. Tô te falando rapaz, a coisa fica feia quando tem ferro no meio, a gente foge que nem diabo foge da cruz! Me pulei toda, catei meus trem, saí vazada, mas a maldita da pedra! Tava lá tapando minha passagem pra rua dos carros! Das pessoas comuns! A porr... Ahn o trem todo tomando forma de demolição, pronto pra me esmagar, a memória de muita gente infestada ali, zanzando pra lá e pra cá - e vou te falar a verdade, véi, não tenho medo de assombração não, tenho medo de energia ruim de gente viva, que impregna nos treco, lembranças que ficam ali, paradas num lugar só, sonhos quebrados saca? Que rodopiam e não tem mais volta?

É aí camarada que os pesadelos são construídos. 

Lutar contra quimera feita do pesadelo dos outros é tenso, como é vai destruir uma ideia que nem mais está ali? Como faz pra convencer esse povo que as histórias daquele lugar podem ser também felizes? Eu vi flor nascendo de escombros, raiz brotando em sujeira federal, já vi Vida vencer sempre a Muerte, e acredite camarada, Ela sempre ganha mesmo que a Dona se chateie. 

Foi tenso, muita água, muito medo, muito arranhão, ganhei uns galos, uns roxo nas pernas, isso foi antes do Dança com Espadas me adotar. Era moleca, não sabia como as coisas funcionavam, mas tava lá eu, no meio dos escombros de um prédio fantasma, escapando daquela quimera sei lá do quê. Dei sorte, a pedra lisa maldita deve ter gostado de mim, só pode, encontrei saída, achei a rua detrás, subi morro numa corrida só, peguei a avenidona e no meu rumo segue reto toda vida até chegar na praça da catedral. É lá que a gente renova as força, porque muita gente desde muito tempo deposita sonho bom lá, sacas? Emoção positiva. Eu não sei ainda equilibrar os esquema, não é essa a minha função aqui, eu não sabia disso, foi Dança com Espadas que me contou. 

Tou falando Zé povinho, não alimenta história azeda do passado triste. Aquela pedra maldita escarrada tá lá ainda pra lembrar disso. Os prodígios dizem que a energia de lá é diferente, por mim foi um sossego de bão, até a porr... Ahn o trem ficou ruim com as impressões dos outros. 

Cuma que é? O inferno são os outros
Sei não chefia, sei não... Ainda vou voltar lá, cê vai ver, só pra sentir o lugar, sacas? Sentir as vibe de lá, tem algo muito estranho ali e não sei se foi a montanha que espirrou esse julgamento, mas tem muito sofrimento de quem sobreviveu, isso mata qualquer feérico que tenta ajudar. Porque é assim que nasce os pesadelos, quando os sonhos quebrados das pessoas são lembrados de novo. 

Ah como sobrevivi? 
Sei lá mermão, dei o fora rápido mesmo, não tinha como dar conta daquilo. 
Era um treco enorme! 

 - Cê contou só parte da história... 
 - Sei de nada não, chuchu... 
 - Você não me engana, Filha dos Ventos. Dança-com-Espadas contou uma história diferente... 
 - Isso porque ele não tava lá, né? Muito fácil. 

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