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06 setembro 2016

[conto com angie] os escorregadios - prelúdio

O pesado livro em uma mão, a caneca cheia de vinho na outra.

"Heresia!!" diriam seus ancestrais, por estar bebendo perto de conteúdo tão antigo e sagrado, mas do jeito que se encontrava na cadeira de madeira que aquela biblioteca reservava para pesquisadores, a admoestação dos antigos não surtiria tanto efeito. Melhor estar confortável com o gosto de vinho barato e o metálico de 2 balas dentro de seu sistema digestório que obedecer velhas regras.

O rosto com hematomas na linha do queixo e subindo pela bochecha, enfeitado por uma breve cor esverdeada da lenta circulação sanguínea comum de seu corpo semi-morto, a camiseta branca que usava como uma armadura empapada de manchas de sangue, sujeira e estilhaços. Remendos feitos à mão em um torso machucado pela pólvora e a tempestade. Os pulmões voltaram a funcionar lentamente após tossir parte do tecido queimado pelo tiro certeiro em uma cavidade vazia.

A mão do vinho virou uma página em pressa de ler a próxima frase, os hieróglifos indecifráveis para sua cultura (e quantas tinha!), mas que de alguma forma faziam sentido. Ali deveria conter algum sentido para o que passava, a angústia de viver sem respostas, a dor de estar entre os vivos, mas se sentir menos viva que aqueles que se diziam mortos.

Era uma linha tênue que constantemente não se aplicava ao seu estado atual.


"Osíris, o Grande deus-Pai, entrara em conflito com seu irmão inescrupuloso Set, o corrupto. No duelo, foi esquartejado, seus pedaços jogados em diversos lugares do Egito. A fiel esposa de Osíris, Ísis, das grandes asas piedosas, recolheu as partes do corpo do marido, reconstruindo seu formato, trazendo-o à Vida, com seu Amor e conhecimento nas artes antigas. Ísis foi bem sucedida em sua tarefa, juntamente com sua irmã Néftis, Anúbis, o deus com cabeça de chacal. Osíris foi o primeiro Amenti, reinando o Mundo dos Mortos e protegendo seus fiéis servos, quarenta e dois ao total, cada um representando cada Juiz do Maat."



A guerra contra Set perdurou por milênios e ali na Idade Contemporânea se travava entre os Malditos de Set e os Escolhidos por Osíris, os Amenti, os Renascidos, os Imorredouros, ou como lhe foi apresentado pelos feéricos: os escorregadios.
(Um péssimo apelido, por assim dizer.)

Largando o grosso e pesado livro na mesa comprida, bufou impaciente pelas informações míticas. A concepção de sua origem era incompleta e absurda. De um ritual mal feito por uma esposa fiel?! Era assim que um escorregadio voltava à vida?! Pra servir de cão de guarda para um cara que mal conseguiu proteger a si mesmo?!

Por que então não recordava de lembranças do Antigo Egito, de grandes monumentos, ou até mesmo do reconhecimento da língua deles?! Porque tudo que sabia era a localização de um local que não conseguia identificar, memórias musculares de lutas e mais lutas, vozes do passado, aromas familiares, uma flecha atravessando seu corpo e dilacerando tudo que havia em seu peito.
Seu corpo maculado por tantas feridas, passadas e atuais, a ausência do órgão primordial, a vontade de viver mesmo sabendo que não havia mais vida em seu corpo, o eterno fugir do Porteiro Macabro, dos diálogos com a Morte de Triciclo e mochila rosa (até hoje não compreendia o porquê dessa entidade aparecer em momentos em que não eram destinados para ela morrer), tantas perguntas, poucas respostas.

A velha bruxa.

Ela sim sabia das respostas, de enigmas, do poder dos antigos e agora toda a trágica história de sua origem estava armazenada em uma criança de 14 anos de comportamento inconstante, um vício em tabaco que ultrapassava o aceitável e por tudo que considerava sagrado: a pestinha fazia de tudo para provar que estava certa.

Talvez com a idade, a criança lembrasse de sua velhice, de ser solidária com a memória falha de alguém que ocupava um corpo que não parecia seu quando rememorava seus anos viva.
Ou talvez não.

Esse era o problema de "voltar" na época errada, não havia certeza se recuperaria a memória do que fora antes e a única fonte de informações mais confiável era uma adolescente delinquente.

Patético.

Enquanto isso não ocorria, pesquisava tudo que aparecia para saciar sua sede de conhecimento. Mesmo que tivesse que engolir contos da carochinha sobre esquartejamentos, esposas fiéis que não sabiam costurar muito bem, deuses estúpidos que não entendiam que quando se morre se permanece morto pelo Equilíbrio Natural da Grande Mãe. 


Da onde havia tirado essa?

Não professava ou seguia religião ou crença alguma, tanto por se sentir incapaz de sentir coisa alguma e também por ser a prova viva que o Deus dos cristãos era falho, falso e sem nexo. O reino dos céus que aprendera a temer desde cedo não existia e toda vez que morria, era apenas a noite eterna, a vastidão de um deserto frio, o barulho ensurdecedor de uma tempestade que jamais cessava e a cidade das luzes distantes.

A cidade que não podia entrar.

Os escritos em outras fontes diziam um pouco dela, a joia no oásis do mundo subterrâneo, talvez aquele paraíso cristão, mas disfarçado em sua concepção, escondida por muros altos e sólidos. Naquela cidade silenciosa, que mal conseguia chegar mais de uma milha, estava algum tipo de descanso. Era o que os escritos diziam, para si um sonho distante.

Recebera a instrução de que se acordasse do Outro Lado do Véu que se refugiasse longe do alcance da tempestade infinita. Não seguisse a luz da Estrela Escarlate. Lutasse com unhas e dentes para não cair nas garras implacáveis de criaturas tão horripilantes que nem seus pesadelos mais ruins conseguiriam expressar.

Com o tempo aprendeu a lutar contra as criaturas, roubar-lhes a energia, tirar suas armas, quebrar suas defesas até extrair forças para retornar ao seu corpo translúcido a espera em algum lugar do deserto, guardado por uma sombra de si. E a provação maior era passar por essa sombra.

Toda manifestação de seus piores defeitos, desejos proibidos, pecados consumados nessa vida e nas anteriores estava ali, pronta para uma conversa. Longa conversa que jamais chegava a acontecer.

Não se sentia à vontade com a sombra. Então a derrubava no primeiro momento, não dando chance de retaliar em palavras ferinas e acusações de crimes que não lembrava de ter cometido. Com um simples golpe, a forçava a se ajoelhar (Mesmo que isso doesse mais que qualquer dor que sentisse), esperava a presença do porteiro Macabro chegar e em uma barganha perversa, prometia trazer uma criatura do centro da tempestade eterna em troca de tempo.
(E tempo era o que mais precisava!)

A sombra esbravejava, xingava, rangia os dentes, tentando convencer o Porteiro que a balança, a pena e o coração deveriam ser pesados. Mas entre a destruição de um ceifador da Dja-ahk e os apelos de uma projeção espiritual de suas misérias, o deus da cabeça de chacal preferia a oferta mais vantajosa para manter a cidade de luzes distantes segura. E era isso que Kristevá fazia desde que fora arremessada do comboio de refugiados em que trabalhava de voluntária aos 23 anos. Com a mesma aparência se manteve, envelhecendo lentamente, observando o mundo moderno se desenrolar em algo novo e imprevisível.

Com a cabeça afundada na mesa de madeira, o corpo mortal dolorido, a alma despedaçada em fragmentos de inúmeras vivências, suspirou alto. O sono não viria tão cedo, as respostas também não. Assim se manteria, assim seria. Até a próxima Morte, o próximo ciclo, a próxima barganha.

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