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18 agosto 2013

[conto] o banco e a conversa

O primeiro encontro foi por acaso, algo como estar na vendinha 24 horas e "coincidentemente" topar com a pessoa assim sem saber como. Apesar de muitos anos terem se passado entre as duas, o primeiro olhar trocado depois de tanto tempo mostrava que a distância não havia mudado muito o que sentiam uma pela outra. Sorriram uma para a outra, trocaram algumas palavras triviais sobre a rotina e ao abrir a porta de vidro da lojinha, cada uma tomava sua direção.

Algumas vezes isso acontecia no meio da tarde, outras vezes no meio da madrugada, poucas vezes a "coincidência" se mostrava genuína, porque sempre havia ali um pequeno carrinho de emoções a ser segurado por uma das duas. Era muito tempo sem se falarem direito, uma distância conhecida quando não se conhece mais com quem está conversando, mesmo se uma delas fora a primeira pessoa a jurar a outra que iria passar o resto da vida ao seu lado.

As compras foram poucas, para uma as sacolas com comida eram incógnitas sobre uma indecisão do que comer quando chegasse em casa (Nunca sabia o que alimentar os filhos sem se repetir), já para a outra era uma simples distração do que poderia fazer agora que voltara para casa (Nem fome sentia direito). Antes da porta de vidro abrir e fechar automaticamente, a mais velha lançou uma pergunta simples, mas que incomodava bastante as duas:

 - Quer conversar um pouquinho?
 - Conversar? Já não estamos? - respondeu a mais nova esperando que a mais velha desistisse da ideia. Conversar estava fora da sua esfera de sociabilidade, não enquanto pudesse consultar o conselheiro novamente e perguntar se era necessário restabelecer algum contato, qualquer contato com pessoas de seu passado. Tudo era muito delicado naquele novo mundo desde que voltara do outro lado do globo terrestre.
 - Tudo bem se não quiser, eu...
 - Não, beleza... Bora conversar então... - a mais nova se ofereceu para carregar algumas compras, a mais velha recusou, uma argumentação sobre peso de compras e estatísticas de problemas de coluna na família da mais velha foi o pretexto para dividirem as sacolas. Uma conhecia bem a outra para recusar um gesto de gentileza.


Caminharam por um tempo em silêncio, uma tentando saber onde poderiam começar a conversa (Se é que havia algo para conversar) e ao cruzarem uma esquina particularmente movimentada, encontraram o banco de ônibus onde costumavam ficar sentadas quase o dia todo, vendo a vida passar, quando ainda eram bem novinhas. O olhar trocado em concordância foi imediato, ali naquele banco havia muitas memórias para ambas de uma vida que não poderiam mais ter. Quinze anos haviam se passado e muita coisa estava perdida entre elas.

Sentaram - a mais velha com um jeito mais acertado, cuidando para impressionar um pouco com seu porte altivo que não perdera desde o colégio, já a mais nova se jogou como sempre fizera, em um sentar desajeitado e curvado no banco - colocaram as compras debaixo do banco, olharam para a movimentação na rua em que costumavam brincar até final da tarde até uma das mães berrar do outro lado da esquina para que tomasse vergonha na cara e voltasse pra casa como uma mocinha decente (Essa era a mãe da mais velha), já a mais nova costumava limpar o suor da testa na camiseta emprestada de alguma menina do abrigo e esperava o carro da assistência social chegar (E nunca chegava na hora certa combinada). Cada uma sabia do que seria uma da outra após brincarem o dia todo naquela rua na frente da escola onde frequentavam, a mais velha provavelmente levaria um sermão dos pais e dependendo da brincadeira pega no flagra (Principalmente se tivesse meninos envolvidos), haveria algum tipo de castigo. Já a mais nova entrava no carro da assistente social, voltava pro abrigo e ia estudar até cansar para então dormir em um quarto que dividia com mais 9 meninas. Mas no dia seguinte estavam ali, brincando novamente sem se importarem com o que aconteceria depois (Não tinham muito com o que se preocupar naquela época).

A tarde não estava quente, nem fria, estava apenas como qualquer outra, muito incomum em uma cidade como aquela. Ali sentaram e ficaram em silêncio, sem saber o que conversar. A mais velha considerou trazer as perguntas de volta, a mais nova queria dizer o quanto sentia falta do passado, cada uma presa em seus próprios pensamentos sem saber exatamente o que as trouxera ali. Talvez as memórias do banco de ônibus fossem ainda frescas para as duas, talvez houvesse algo para terminar (Ou começar), mas a conversa não começara e nem terminara até então.

 - Então... - a mais velha pigarreou, consertando os óculos de armação grossa que escorregavam de seu nariz. As lentes estavam um pouco arranhadas devido a atividade noturna com seus filhos pequenos, estar parcialmente cega  por não ter tempo de trocar os óculos era trivial para uma mãe ocupada. - Como está?
 - Bem, bem... estou bem.... E você...? - a mais velha sorriu levemente e soltou um chiado.
 - Filhos... Cê sabe...
 - Não, não sei, não... - sorriu a mais nova com um pouco de tristeza. Acontecia de vez em quanto, quando trocavam palavras na vendinha e a resposta honesta surtia tanto efeito quanto um soco bem dado no estômago.
 - Isso não vai funcionar, não é? Bem... - a mais velha suspirou, fungando um pouco e tirando os óculos do nariz, os ajeitando acima da testa, como um arco de cabelos. Não enxergava nada sem as benditas lentes, mas o que importava agora? Era a primeira vez que conseguia ter um momento de conversa séria com quem jurou passar o resto dos seus dias há quinze anos atrás. - Sei que você não é muito de tagarelar...
 - Até que estou mais falante do que antes... - comentou a mais nova torcendo a manga de sua jaqueta com nervosismo, o lábio ressequido e ferido foi mordido algumas vezes, o olhar nunca deixando o chão.
 - O que aconteceu conosco...? - perguntou finalmente o que queria perguntar. A mais velha esperou a resposta vir em algo como um grunhido ou uma incerteza, mas sorriu saudosa quando ouviu a réplica:
 - Você quer que eu explique cronologicamente ou tente esmiuçar sociologicamente o que aconteceu com a gente?
 - Sua espertinha duma figa... - a mais velha a cutucou nas costelas e não teve a reação que esperava (Cócegas era o ponto fraco da mais nova), seus dedos tocaram uma superfície dura e fria que a jaqueta protegia por cima do corpo bem desenvolvido da mais nova (Ela sempre fora mirrada e curvada, agora estava um tanto em forma, mas ainda curvada). - Hey... Não sente mais cócegas?
 - O colete não deixa... - a mais nova suspirou, tirando a jaqueta do caminho e levantando um pouco a blusa de uniforme azul escura. Um colete de plástico parecia cobrir todo suas costas, bem ali em todas as costelas do lado direito em um abraço esmagador.
 - Como é que você conseguiu isso?
 - Acidente de trabalho... - riu a mais nova sem muita vontade. A mais velha ergueu as sobrancelhas assustada e sem cerimônia alguma buscou a mão da mais nova para segurar (Era um gesto usual quando estavam juntas há quinze anos atrás).
 - Sério, pirralha, o que houve?
 - Mina terrestre, comboio tombou, caí do lado errado, quebrou alguma coisinha aí, nada importante... Vou viver...
 - Meu Deus...
 - Desde quando cê é crente? - a resposta da mais velha foi socar o ombro da mais nova, como sempre fazia quando ela a provocava demais nos tempos de colégio, a reação costumeira era a mais nova se encolher rindo por conseguir tirá-la do sério, mas agora o soco atingiu a parte macia do ombro (Que não era mais tão macio assim) e sentir os nós de seus dedos doerem um pouco pelo impacto.
 - Cê tá bem?
 - Sim...
 - Como é que...?
 - Cê perguntou o que aconteceu com a gente... - o olhar continuava pregado no chão, as mãos que torciam a manga da jaqueta não pareciam estar fazendo aquilo por alívio para a situação constrangedora, a mais velha pigarreou novamente e fungou mais uma vez. Não queria cair no choro só por saber de tanto em tão pouco tempo de conversa. - Acho que a gente seguiu os nossos caminhos, né? Não tinha muito segredo nisso naquela época...
 - Foi uma surpresa quando você disse que ia embora...
 - Nada ganha com você grávida e casando... - o mesmo tipo de entonação de resposta honesta que ela tanto sentia falta fez a mais velha segurar bem a respiração e não deixar o choro vir de vez. Havia um abismo entre as duas ali no mesmo banco que dividiram o primeiro beijo e a última promessa. - Fizemos o que tínhamos que fazer... Eu não ia ficar esperando naquele abrigo, precisava fazer alguma coisa da minha vida, sabe?
 - Sim, sim... - e o gesto simples de passar a mão nos cabelos da mais nova foi automático. Era como recuperar um pouco do passado, mesmo sabendo que não havia muito para ter esperança. Um misto de pena e culpa tomou a mais velha, mas ela não se deixou levar pelo choro, e por muitas vezes ela fazia isso para ser a pessoa mais forte ali daquele relacionamento complicado de adolescentes sem muita perspectiva de vida.
 - Porcarias acontecem... - ela comentou um pouco mais animada, as duas dividiram o mesmo riso, mas não durou muito.
 - Eu senti tanto sua falta... - a confissão da mais velha pareceu não atingir o cenho franzido da mais nova mirando o chão como um inimigo particular. O mesmo carinho nos cabelos foi repetido e a mão da mais nova encontrou a sua. Estava fria com dedos tão rígidos que não se dobravam muito além do permitido.
 - Eu também... - um ônibus estacionou ali e passageiros soltaram, o olhar parcialmente turvado da mais velha identificou um sorriso da mais nova para um dos passageiros que saíra, era uma velhinha grisalha, carregando uma bolsa cheia de livros.
 - Hey você, menina! - disse a velhinha não se importando se a mais nova não se levantou do banco para cumprimentá-la. Abraçou desajeitamente a mais nova - Voltou, é?
 - Tamos aí, sim senhora... - a senhora acenou de leve para a mais velha por não se lembrar bem quem era, a mais nova costumava passar muito tempo na biblioteca da escola e a ajudava com tudo que poderia ser possível. Era impossível não lembrar da menininha que literalmente cresceu em sua companhia, e quando saiu do colégio para se alistar no Exército, enviava cartas a cada mês, cartões postais e telefonava todo Natal enquanto estava longe do outro lado do mundo. - Recebeu minhas cartas?
 - Recebi sim, menina! Cê trata de passar lá na biblioteca pra gente combinar um lanche...
 - Combinado, sim senhora... - a mais nova tentou se levantar para abraçar a bibliotecária novamente, mas preferiu ficar no banco. - Passo lá mais tarde então...
 - Muito bom saber que você voltou bem... Força pra você, menina... - e apressada como sempre fora, a bibliotecária do colégio pegou seu rumo e deixou-as ali no mesmo silêncio que as acolhia quando eram flagradas beijando naquele banco de ônibus há quinze anos atrás.
 - Ela nem lembrou de mim, hahahaha... - comentou a mais velha aliviada.
 - Pelo que lembro, você não era fã de livros...
 - Ah que seja... - zombou a mais velha, tentando esquentar a mão fria na sua. A mais nova desviou o olhar do chão para as mãos unidas, como se analisasse aquele gesto como algo inteiramente novo (E não era, as duas sempre mantinham as mãos unidas quando estavam juntas naquele banco há quinze anos atrás).
 - Quais são os nomes? - perguntou a mais nova, a mais velha não entendeu.
 - Nomes?
 - Filhos? - a mais velha soltou um grunhido de auto-repreensão e riu um pouco.
 - Miguel e Rafael.
 - Sério, cê virou crente é?
 - Quer parar com isso? - riu a mais velha tentando não socar o ombro como sempre fazia.
 - Tanto nome criativo...
 - Eu gosto dos que escolhi...
 - Tá né? Nem vou discutir, hahahaha... - a risada foi mútua por saberem que a triste verdade era essa, não haveria nada a ser discutido.
 - Queria homenagear certo alguém...
 - Com nome de anjo, oh sim... - um aperto na mão fria e rígida a fez parar de querer resgatar as provocações de colegial. Não havia espaço mais para isso depois de tanto tempo.
 - Se fosse uma menina, teria colocado o teu.
 - Não obrigada, feio demais esse meu nome... - a mais velha ajeitou a jaqueta no corpo da mais nova e percebeu na tag no lado esquerdo do peito.
 - Como é que te chamam agora?
 - Tenente1, cê acredita? - disse a mais nova com uma careta fingida. - Nada a ver...
 - Cê subiu depressa...
 - Quando cê faz serviço médico e comunitário a escalada é mais rápida mesmo... Dois anos a menos que quem fica por lá em serviço de patrulha.
 - Espertinha duma figa...
 - Era isso ou limpar escritório e banheiro o dia todo. - o silêncio se instalou de novo, cada uma com uma nova pergunta para trazer aquela conversa ao ponto que queriam.
 - O que aconteceu conosco? - a pergunta inicial foi a única que a mais velha conseguiu questionar. A resposta de antes não fora satisfatória, faltava algo, faltava o motivo de seus caminhos terem sido outros durante tanto tempo.
 - Cê gosta dessa pergunta, hein? - riu um pouco a mais nova, demonstrando a impaciência de quinze anos atrás.
 - Sério pirralha...
 - Não aconteceu nada, deve ter sido isso... E por não acontecer nada a gente decidiu o que tinha que fazer...
 - Eu não escolhi ficar longe de você.
 - E eu não queria ficar longe de ti. - retrucou rapidamente a mais nova, a mais velha recolheu os óculos da testa e os colocou no nariz novamente, queria disfarçar as lágrimas que estavam marejando sua visão já turvada pela miopia avançada. - A gente mudou pra caramba, chica... - ouvir o apelido antigo fez todo o muro desabar em uma única palavra. Fungando rapidamente e levando as mãos para os olhos, a mais velha limpou as lágrimas que ameaçavam cair, chamando atenção da mais nova. - Não era pra cê chorar, foi mal...
 - Não, tá tudo bem... Está tudo bem... A gente tá conversando e isso é bom... - fungando mais um pouco e voltando a ajeitar os óculos.
 - Me senti mal pra caramba quando eu soube...
 - Ah isso, tá tudo bem... Eu também ficaria furiosa, hehehe...
 - Não fiquei com ciúmes, fiquei puta por não poder estar aqui contigo quando você teve os meninos... - a voz honesta estava tão direta que a mais velha ergueu as sobrancelhas novamente em completa surpresa. A mais nova costumava ser tão contida e escondia sentimentos o tempo todo que era um verdadeiro jogo de adivinhação para saber o que ela sentia às vezes. - Ainda mais que você precisava de ajuda com eles e tal...
 - Mamãe me ajudou um bocado nisso...
 - É, mas não é a mesma coisa... Tem que ir ao médico e fazer os esquemas todo antes de ter gêmeos, é mó perigoso isso de ter gêmeos sozinha e sem pré-Natal...
 - Cê se preocupa com cada coisa...
 - Queria que eu me preocupasse com o quê? - a pergunta foi ferina e impulsionou o muro derrubado para uma reconstrução completa.
 - Acho que você fez a sua escolha quando decidiu ir. Não tem que ficar se culpando por não estar aqui.
 - Cê gosta de me deixar sem graça, né?
 - Faz parte. - o silêncio de palavras cortadas ficou por um pouco até a mão da mais nova, encontrar o rosto da mais velha e devagar tirar os óculos de seu nariz. Com cuidado, a mais nova abriu um bolso de sua mochila e tirou uma caixinha de óculos, um paninho de limpeza e esfregou bem cada lente com o cenho franzido. O gesto de carinho não passou despercebido e enquanto limpava as lentes dos óculos tartaruga da mais velha, recebeu um beijo quente no pescoço. Aquilo a fazia derreter imediatamente há quinze anos atrás, mas ali, naquele banco de ônibus, apenas sentiu um arrepio subir pelo ombro insensível fraturado em muitos lugares e em recuperação pelo "acidente de trabalho". Devolveu os óculos com a caixinha e o paninho. - Não posso. - negou a mais velha devolvendo os objetos.
 - Perdi meus óculos lá no quartel...
 - Mas você vai precisar.
 - Tou usando lente agora. - a notícia fez um sorrisinho malicioso vir nos lábios da mais velha. O beijo dado e a sensação de não ter perdido o mesmo desejo pela mais nova trouxe mais recordações que poderia ter para o tipo de conversa ali tratado. - A gente mudou muito, chica e... eu não quero fazer nada agora. Só quero me acostumar com as coisas aqui, sabe?
 - Sim, sim...
 - Não posso ficar saindo o tempo todo...
 - Não estou pedindo para você sair comigo...
 - Mas eu queria... - o sorriso da mais velha cresceu, o aperto em sua mão foi carinhoso. - A gente poderia tentar, sabe? Desde o começo, ser amigas... - a risada debochada chamou atenção da mais nova (Que se sentiu um pouco ofendida por ser subestimada no pedido tão singelo).
 - Nós nunca fomos amigas, você sabe disso...
 - Não custa tentar...
 - Não quero ser sua amiga.
 - Que cê quer, então? Além de ficar me perguntando o que aconteceu...
 - Quero te levar pra casa.
 - Nem pensar. Tenho que ir na tia da biblioteca, cê viu... - as duas se olharam em desafio. - Não adianta vir, porque anos de quartel me ensinaram a desviar de manipuladores sentimentais como você...
 - Ohohohohoho, tamos bem então... Tudo bem, então! Foi ótimo conversar contigo... - a mais velha se levantou fingindo estar ofendida, mas com um claro sorriso de satisfação.
 - Hey, onde pensa que vai?
 - Pra casa. - mencionando pegar suas compras no chão.
 - E vai me deixar aqui?!
 - Cê acabou de recusar a uma proposta direta de noite selvagem de puro amor, quer que eu faça o quê?
 - Cê não pode me deixar "aqui"... - a mais nova apontou para o banco.
 - Posso sim.
 - Chica... - a mais nova pediu com um tom de apelo que a mais velha jamais ouviu ela fazer. Entendeu então o que a mais nova queria falar, não podia deixar ela ali naquele banco novamente como fora quinze anos atrás. Então lembrou do que realmente aconteceu entre elas para chegarem aquele ponto: a mais velha tivera medo de perder a mais nova quando soube do alistamento, de sua gravidez. Levantara do banco de ônibus e fora embora sem dar adeus, porque achava que no dia seguinte encontraria a mais nova ali como sempre encontrava. Mas não encontrou.
 - Droga... - as lágrimas desceram mais uma vez e ela foi obrigada a esconder o rosto entre as mãos, em um ritual confuso de limpar os olhos e tirar os óculos sem deixá-los cair.
 - Sério, você ficou muito emo depois que teve filho, é? Cê nunca chorou na minha frente, nunca... - o levantar do banco foi desajeitado e dolorido. Sem muitas forças para conter qualquer coisa enterrada em seu coração, a mais velha desabou no choro, enquanto a mais nova se aproximava para abraçá-la. - Chica, não chora, por favor... Olha, o que passou, passou, a gente tem que ver umas coisas antes de qualquer coisa... Hey, não fica assim... - o abraço preencheu totalmente as duas, como se nenhuma outra pergunta precisasse ser feita, não naquele momento.
 - Não quero te perder...
 - Cê nunca perdeu...
 - Cê poderia ter morrido lá, sua tonta!
 - Mas não morri, tou aqui...
 - Por que não mandou cartas? Pra velha da biblioteca mandou, pra mim, não?
 - Não tinha teu endereço, pra ela era só mandar pra escola.
 - Como você é prática!
 - Ser prática me ajudou bastante na minha vida, aliás... - o abraço continuou até outro ônibus estacionar e despejar mais passageiros. A mais velha se afastou um pouco e olhou para a mais nova, ela parecia perdida entre tantas pessoas, não sabendo o que fazer para não ser esbarrada ou algo assim. Sorriu com essa nova pessoa que voltara lá do outro lado do mundo por ela. De tantas surpresas que tinha na vida aquela seria a única que jamais esperaria que acontecesse. Limpou o rosto com a manga do casaco e pigarreou para recuperar o autocontrole.
 - Vamos.
 - Quê?
 - Me ajuda aí... - pegando algumas sacolas e dando as mais leves para a mais nova levar.
 - Ir pra onde?
 - Lá pra casa.
 - Mas eu disse... - indicando a escola ali atrás.
 - Quer que eu comece a chorar de novo? Porque posso fazer isso o dia todo. - o sorriso conhecido da mais velha fez a mais nova a olhar com desconfiança. - Vamos, tá esperando o que? Convite formal? Permissão em cartório? Eu conversar com teu superior? - a mais nova pegou o restante das sacolas e caminhou atrás da mais velha bufando impaciente. O mesmo clima de quinze anos se restaurara em poucos segundos, tudo por conta de um abraço. - Cê fica quietinha aí que a caminhada é longa...
 - A gente poderia ter pego o ônibus.
 - Prefiro fazer você andar, tais precisando de exercício... - o xingamento da mais nova foi abafado por um beijo estalado em sua bochecha e uma piscadela sedutora.
 - Manipuladora barata... - chiou a mais nova.

---xxx---
1 - O cargo de Tenente nos rankings militares costuma variar conforme a organização. Estou considerando essa patente como Segundo-Tenente que é um cargo raso de quem está em trabalho de campo, mas faz da parte do Corpo Médico - seja da Aeronáutica, Marinha ou Exército (Eles costumam trabalhar com o pessoal da Cruz Vermelha e a ONU em conflitos mais "demorados", a promoção de cargo vai mais rápido que os oficiais comuns). Posso estar equivocada, as fontes são mais bagunçadas do que vocês possam imaginar - hierarquia, pra quê precisa?!

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