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07 março 2013

Conto: O lugar mais esquecido


O lugar é frio e nada hospitaleiro, mas sinto uma familiaridade espetacular ao dar meu primeiro passo. A pegada que se fixa na neve fofa e congelada não me traz lembranças, mas sim dores antigas. Já estive ali em alguma vez na vida ou em meus sonhos, um lugar distante, esquecido e sem muito eco para denotar algum vazio. É apenas neve branca e sem graça. Meus passos são arrastados, cobrindo uma vasta extensão na planície ampla. Eu sinto frio, claro que sentiria, como alguém vestido com poucas peças de roupa para um clima tão hostil. Não há vento, o que agradeço profundamente enquanto sigo meu caminho sem destino na imensidão clara.

Ruminando uma canção antiga e esquecida, eu sigo. de olho no horizonte como se ele fosse me guiar a um lugar mais aprazível, mas todos nós sabemos qual é a finalidade disso tudo: é a sobrevivência. Desta vez não carrego bagagens, nem tenho bolsos, apenas a roupa do corpo e a vontade de descobrir o que vou fazer em seguida. A curiosidade vai além de qualquer racionalidade, sempre foi. As melhores conquistas vieram dela, mas também admito que os piores erros foram abençoados pelo mesmo mal. Mais alguns passos e vejo que não estou sozinha. Há pessoas comigo nessa caminhada no gelo que não termina mais.

Três companheiros de viagem que sequer consigo identificar o rosto.
Eles se arrastam também, como se tivessem percorrido o caminho há muito mais tempo que eu. Mas cá estamos nós, segurando nossos fardos e caminhando em direção de sabe-se lá o quê. A planície que antes era plana e com poucos declives, começa a se erguer lentamente, pedindo mais de nossos ossos, cobrando mais de nossos nervos. O ruído que agita a neve do lugar não me estranho, mas não me parece ser o vento, uma fina camada de poeira congelada cobre nossos corpos, não sinto mais o meu rosto.
O companheiro que me passa a certo momento, grunhe alguma coisa. Não em um grunhido animalesco, mas um quase gemido de compaixão. Ele quer ficar a frente do grupo, ele quer ser o líder, ele sente que precisa cuidar de nós como se fosse possível. Estamos perdidos, sem rumo, caminhando na neve de um lugar provavelmente esquecido por qualquer deus que valha, não seria agora que companheirismo, liderança e compaixão iria salvar alguém do eminente fim trágico.

Mas cá estamos nós, sendo liderados por alguém que só grunhiu para expressar sua força.

A caminhada continua por muito tempo, até a inclinação do caminho se tornar difícil para manter o passo arrastado, os joelhos pesados e as costas certas. Tudo está se encaminhando para um fim que todos nós já sabemos, mas a curiosidade nos arrasta para lá. A curiosidade que matou o gato, a curiosidade que destruiu vidas, a curiosidade que abriu portas. O ruído de nossos passos arrastados no que parece ser o começo de uma escada natural feita pela natureza engelerante agora se confunde com o arfar de nossos pulmões ressequidos. Há vida ainda em nossos corpos, há esperanças para se chegar a qualquer lugar se continuarmos o ritmo, mas o ruído do silêncio em volta é que nos aborrece.

O que se colocou na frente por piedade retirou o casaco coberto de neve, o escudo desgastado de um guerreiro está atrelado ao seu braço, a dupla cabeça de um lobo enegrecido me chama a atenção. Ele grunhe para prosseguirmos e o ruído aumenta conforme os passos vão aumentando. A planície some em nossos pés, e a escada natural se torna traiçoeira. O chão não é mais plano, a neve não é mais fofa, tudo se torna mais pesado que antes e o ruído do silêncio se torna ventania. Nossos corpos sentem a primeira rajada de vento, como um tiro perfeito da natureza que penetra em nossas peles, ultrapassa músculos, nervos e se aloja em nossos ossos. Tiros perfeitos se não viessem com sangue e quedas.

Os dois companheiros detrás são atingidos por flechas invisíveis. Ministradas pelas mãos cruéis dos ventos, elas deslizam por suas costas, arrancando gritos de dor, surpresa e desespero. O líder se contrai em uma convulsão dolorosa, seu sangue espirra no local jamais maculado por coisa alguma, a mancha aumenta conforme os desconhecidos se deitam ao chão, afetados pelas suas feridas mortais. Se eles irão morrer ou viver, não é de minha responsabilidade. Nenhuma flecha me atingiu e a curiosidade obriga a questionar o porquê de não ter sido vítima de tal emboscada. Os segundos se passam tão lentos que mal consigo respirar direito. O que parece ser o fim é na verdade o começo de uma nova agonia.

Ajoelho-me ao lado de um dos companheiros desconhecidos, seguro seu ferimento como se pudesse contê-lo, mas a vida nos ensina que a Morte não pode ser contida, não totalmente. A Vida se esvai do companheiro misterioso, que jamais vi rosto ou ouvi o som de sua voz, marcando a escadaria natural de gelo e deixando mais traços de violência do que podemos calcular. O mais alto e corpulento para de respirar subitamente, a infalível o atingiu também em cheio, apenas demorou um pouco para se assentar por conta do clima péssimo da região.

O líder continua em sua agonia e minha certeza se confirma: serei a próxima. Arrasto-me ao chão coberto pela neve nada convidativa e me escondo o mais rápido possível para não atrair a atenção. A flecha vem, mas de jeito diferente. Me acerta no meio do peito, mas não me joga ao chão. A flecha é invisível também, igualmente dolorosa como a de meus companheiros, mas me atinge em local que eu pensava não estar vivo.

As escadas me parecem tortas, deslizo sobre elas em uma confusão de giros, a dormência da caminhada se junta a da flecha invisível. Chego tão bruscamente ao final da planície que me parecia ser plana para encontrar um lago congelado. Ao sentir as costas quebrando o gelo frágil, meu corpo reage imediatamente a agonia do frio intenso. A flecha que ainda está cravada em meu peito parece torcer em seu lugar, levando-me a um tipo de insanidade que só acomete aos prisioneiros e aos torturados. Meu corpo afunda, como um saco de imenso nada, sendo drenado pelas águas congeladas de um lago sem fim.

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