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03 janeiro 2013

Conto - O Soldado Perdido

Tudo acontece em poucos minutos, como se a decisão tivesse sido feita nesse pequeno intervalo de tempo, tão urgente e apressada que mal sabia se os resultados seriam viáveis. Arrastando sua perna dilacerada por uma bala inimiga, uniforme coberto por lama, suor e sangue, rosto marcado por ferimentos e lágrimas que jamais iriam se curar, o olhar distante e marejado, nas mãos vazias apenas o lenço delicado, bordado com a inicial de seu nome em um verde tão claro que parecia ser transparente. Apesar da aparência doentia, destruída e sem esperanças, o lenço o fazia sorrir.


E ao mirar o pedaço de pano de textura fina, ele sorriu mais uma vez, entre o pesar, o desespero e a alegria fugaz que a lembrança trazia ao ver que um pouco de sua antiga vida sobrevivera ao massacre de milhares de almas naquele campo de batalha vazio.

O soldado se arrastou mais alguns metros, sentindo a dor na perna se tornar nada além de um estímulo distante, ali no meio daquele campo vazio, ele se endireitou, face virada para a névoa que cobria os corpos de seus companheiros e inimigos, cobria a vergonha e a insensatez, cobria principalmente suas esperanças de voltar para casa. O Sol não existia naquele pedaço de Inferno na Terra, apenas o frio da manhã que engelerava seus ossos, o pestilento ar úmido dos cadáveres pútridos sendo consumidos pela terra em que pisavam, o vento que assoviava tão alto que era difícil manter uma conversa com qualquer um. Mas afinal de contas: Quem gostaria de conversar em cenário tão deplorável?



O lenço em sua mão foi escorregando de seus dedos suados, calosos e machucados, sendo levado pelo pouco vento dali e pousando perto do pé de um alguém que presenciara também o desfecho da batalha. o alguém se abaixa, pega o tecido e estende de volta ao dono, mas o soldado não responde, ele está ocupado demais sentindo todas as dores do mundo, todo o peso do mundo nas costas, todas as saudades que um homem poderia sentir. Saudades de casa. Era isso que o matava mais e mais a cada dia que passava ali naquela batalha estúpida e sem sentido.

O alguém ofertou o lenço novamente, recebeu um grunhido dessa vez. E uma palavra.
" - Lar..." - o alguém avisou que era perigoso ficar ali fora na friagem da manhãzinha. Avisou também que se não descansasse, a perna ficaria inutilizada. O soldado pouco se importou, estava ocupado em ver além da névoa que cobria o campo de batalha. Ver além das sombras dos corpos, do verde estragado por lama e sangue e pólvora, ver além do horizonte esbranquiçado e fantasmagórico, como um véu aveludado de um cinzento tão agonizante quanto sua nostalgia.

O alguém tocou o ombro do soldado e tentou conversar com ele, como um velho amigo que consola o outro sem saber direito o que dizer. Poucas palavras enroladas, uma das mãos no ombro do soldado absorto na névoa e a outra ofertando novamente o lenço delicado que pertencia ao outro.
" - Não poderei mais voltar..." - o murmúrio é quase inaudível por conta do vento barulhento, mas a voz rouca que o carrega faz o alguém tremer os joelhos inconscientemente. E a afirmação é repetida diversas vezes, como um mantra agourento de dias piores que aqueles que tiveram, a névoa estaciona de forma bizarra sobre os corpos e quase nada além do campo de batalha pode ser visto acima do chão.

A morte tem formas estranhas de esconder sua sinceridade.

O mantra continua nos lábios do soldado ferido, a mão que estava em seu ombro puxa o uniforme para colocar um pouco de juízo no que seria o pior inimigo de qualquer guerreiro valoroso: Sua própria mente. O abraço que se segue não consola, mas sim diz adeus. O alguém se coloca na defensiva, falando muitas palavras mais enroladas ainda que antes, reafirmando tudo aquilo que pode atrapalhar ou adiar o que o soldado perdido transparece no olhar perdido, vago e ferido.

O abraço antes amigável se torna brutal, alguns empurrões, troca de tapas e puxões são dados, o soldado não para de repetir o mantra, o alguém grita em seu rosto que o Lar está próximo e sim ele voltará em breve, o próximo golpe atinge o alguém no estômago, retirando seu ar por poucos segundos daqueles longos minutos de uma decisão tão rápida. Junto com seu fôlego, vai sua arma tão segura no coldre de sua cintura, recém-carregada para eventual ataque (Se houvesse mais alguém vivo naquele campo amaldiçoado).

Antes que pudesse gritar ou negar a Realidade, ouve-se o mantra sendo abafado por um cano apontado para os próprios lábios, o clique, o segundo interminável, e o estampido crepitante. O soldado perdido parece ainda estar naquele mundo, a arma de cano grosso escorregando de seus lábios, os olhos girando nas órbitas e fechando imediatamente ao cair ao chão, boca aberta mostrando o tamanho do buraco da bala atravessada no crânio, joelhos falhando pela primeira vez em toda a sua existência, o corpo desanimado tombando em combate da forma mais vergonhosa possível para um guerreiro morrer.

O campo manchado do sangue fresco e quente de um soldado que achava que estava perdido por não poder voltar para casa. Alguém como o alguém que também sentia a mesma sensação todo santo dia ao acordar naquele maldito lugar. Saudades de casa, essa sempre seria a pior saudade que alguém poderia sentir. O mantra recitado pelo companheiro de batalha agora estava em sua cabeça, martelando seus ouvidos como uma maldição rogada, envenenando suas idéias e fazendo seus olhos turvarem diante da Realidade daquele mundo. O soldado se fora, agora só restava a casca.

Como iria dar a notícia?

Agarrou-se ao companheiro em uma tentativa de trazê-lo de volta, mesmo após presenciar o suicídio desesperado. Abraçou-o como um irmão - pois seus laços eram tão eternos quanto a linhagem de sangue - chorou-o como um filho - pois há muito sabia que há forças maiores que apenas a amizade e a gratidão - para finalmente sacudi-lo como um criminoso pelo seu crime hediondo, sua falha crítica, sua terrível decisão.

Para quem iria dar a notícia?

O lenço esquecido ali no chão, banhado em carmim. Tão delicado que absorveu simples gotas como se fosse embebido diretamente na ferida. O corpo, o lenço e a névoa. Logo não veria nada naquela manhã nefasta se não se apressasse.

A quem iria dar a notícia?

A resposta estava ali no lenço, a inicial do nome do soldado perdido era a mesma que a de sua amada. Em longas noites de vigília, trêmulas madrugadas de boemia, o soldado perdido sempre citava o bom nome da donzela que arrebatara seu coração por completo. A bela donzela que o fazia suspirar nas horas antes do pôr-do-sol, a bela donzela que o fazia cantarolar enquanto recarregava e limpava as armas, a bela donzela que dera o lenço bordado era para quem deveria dar a nota de falecimento.

Soltando o corpo do soldado perdido, o alguém o deixou ali, deitado como se estivesse dormindo. Aconchegado pelo gramado ainda fértil daquele lugar, ajeitou seu uniforme, dobrou bem o casaco onde era mais elegante, tomou cuidado com a perna ferida e verificou sua homenagem funesta. Ele parecia mais tranquilo, em paz, calmo. Parecia, apenas isso.

[...]

O lenço foi recebido, as lágrimas foram veladas e cuidadosamente escondidas, a mão que segurou a sua lhe pareceu familiar - já que o soldado perdido descrevera tantas vezes - a voz que disse as próximas palavras também lhe pareceram estranhamente familiares.
" - Eu ficarei bem, muito obrigada." - e apenas isso. A donzela tão bela levantou-se da cadeira em que amparara sua queda ao receber a notícia forjada da morte gloriosa do soldado perdido em um campo de batalha de vorazes inimigos (Pura ilusão), como ele lutara até o fim para manter a honra do país, como ele segurara o lenço até o último momento de sua vida, como seu último suspiro foi o belo nome da bela donzela. Mentiras, apenas isso.

Quem viveria com as mentiras seria a bela dama que segurara sua mão uma única vez. Uma mão pequena demais para se ver uma guerra entre os homens, a mão de uma criança que considerava o soldado perdido como um herói. A mesma criança ao soltar a mão da viúva sentiu pela primeira vez em seus poucos anos de vida que o Amor era perigoso e mortal. Prometeu a si mesma que viveria com a verdade daquela manhã nevoenta, e aguentaria a viver com a verdade, apenas não suportaria sofrer do mesmo mal que levou o soldado perdido a ruína.

Ali a criança se tornou adulta e seu coração inocente se fechou para o Amor.

A bela dama observava o lenço manchado de sangue, e ela sorria. Assim como o soldado perdido antes de cometer o crime. Ela sorria e isso parecia ser a coisa mais certa que a criança fizera.

Parecia, apenas isso.

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